Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de março do ano passado, que
considerou a TR (Taxa Referencial) inapropriada para corrigir perdas
inflacionárias de papéis emitidos pelo governo, abriu caminho para a
revisão dos saldos também do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS) calculados desde agosto de 1999. Diante dessa possibilidade,
inúmeros trabalhadores brasileiros começaram a buscar a Justiça em busca
da correção, mas não há garantia de que eles possam ser bem sucedidos.
A questão é polêmica e deve se arrastar por um longo período. Segundo a
Caixa Econômica Federal, operadora do FGTS, 29.350 ações já chegaram à
Justiça, em primeira instância. A instituição defende o reajuste atual e
promete recorrer de qualquer decisão contrária à correção do saldo pela
TR. Entre recursos e mais recursos, a confusão deve ser resolvida
apenas no STF.
Ministros do STF e outros juristas ouvidos pelo
G1 se
dividem sobre o que vai acontecer. Todos preveem, de qualquer forma, uma
batalha jurídica por causa da posição adotada pela Corte em relação aos
precatórios (títulos de dívidas que o governo emite para pagar quem
vence na Justiça processos contra o poder público). Esses papéis, assim
como o FGTS, também eram corrigidos pela TR, mas o Supremo decidiu em
março de 2013 que o índice não pode ser usado para repor perdas da
inflação.
Efeito cascata
O ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto, ex-presidente da Corte, participou do julgamento dos precatórios e votou contra o uso da TR para atualizá-los. Ao
G1, ele afirmou acreditar que o entendimento do tribunal não pode ser “generalizado”, pois isto poderia gerar um “efeito cascata”.
Para Ayres Britto, o Judiciário precisa analisar individualmente a
legislação que rege o FGTS para verificar se o índice é adequado ao
fundo. “Para cada instituto jurídico, é preciso haver uma análise
individualizada. Pode haver um efeito cascata, então tem que examinar o
regime constitucional, o regime da correção monetária atinente a cada
instituto”, ressaltou.
Para o atual ministro do STF Marco Aurélio Mello, no entanto, o
entendimento do tribunal no julgamento dos precatórios, de que a TR não é
adequada para compensar as perdas inflacionárias, pode, sim, ser
aplicado em ações que envolvam FGTS. “A premissa é a mesma, porque se o
Supremo proclamou que a TR não reflete a inflação do período (de 1999 a
2014) isso se aplica a outras questões jurídicas, como o Fundo de
Garantia."
Na linha do que acredita Marco Aurélio Mello,
trabalhadores obtiveram uma vitória inédita contra a Caixa em três
ações na Justiça Federal do Paraná (2ª Vara Federal da Subseção
Judiciária de Foz do Iguaçu). O juiz de primeira instância Diego Viegas
Veras aplicou a interpretação do Supremo e fixou o IPCA (Índice de
Preços ao Consumidor Amplo) como parâmetro para o reajuste do fundo. A
sentença foi promulgada no dia 15 de janeiro.
Outro ministro do STF ouvido pelo
G1, mas que não quis
ter o nome citado, disse acreditar que o posicionamento atual do
tribunal “preocupa”, pois pode repercutir em vários casos de cobrança
que envolvem o poder público, podendo gerar prejuízos financeiros para o
Estado.
“Temos que esperar o posicionamento final da Corte, pois ainda
julgaremos recursos, os embargos de declaração. Acho que essa decisão é
uma das piores já produzidas. Se o Supremo mantiver a posição de que a
TR não é aplicável, ela vai repercutir, sim, em outros casos, inclusive
no FGTS”, disse o ministro.
"Cada juiz vai decidir como quiser"
O advogado Ives Gandra, especialista em Direito Tributário, acredita
que a posição do Supremo em relação aos precatórios é aplicável ao FGTS.
Ele destacou, porém, que como o tribunal não adotou posicionamento
específico para a correção do Fundo de Garantia, possivelmente haverá
uma profusão de decisões variadas na primeira instância até que o tema
chegue à mais alta corte do país.
“A proibição da TR como base de correção dos precatórios vai repercutir
nas ações do FGTS. Agora, enquanto não há jurisprudência específica,
cada juiz vai decidir como quiser. Evidentemente que o entendimento deve
afetar as decisões das instâncias inferiores, que têm, sim, fundamento
para considerar o IPCA o referencial de correção mais adequado”,
destacou o jurista.
Na visão de Ives Gandra, o poder público não pode corrigir o FGTS e os
precatórios com base em referencial menor que a perda inflacionária. “É
preciso respeitar o princípio da isonomia.”
Outro especialista em Direito Tributário, o advogado Pedro Teixeira
Siqueira diverge da interpretação de Ives Gandra. Ele defende que a
decisão da Suprema Corte no caso dos precatórios não pode ser aplicada
em ações que não envolvam débitos com a União.
Siqueira destacou que os precatórios são débitos “líquidos e certos”
dos contribuintes com o poder público e que o atraso no pagamento, neste
caso, não pode penalizar o credor. No entanto, para o especialista, o
entendimento não se aplica ao FGTS, porque o fundo seria apenas uma
espécie de “poupança”, não um débito que precisa passar por correção
monetária.
“No caso do FGTS, por outro lado, a lógica desenvolvida naquele
julgamento parece não se aplicar. Isso porque o FGTS não é mais do que
uma poupança compulsória dos trabalhadores, de forma a socorrê-los em
períodos de necessidade, devidamente previstas em lei. Tendo em vista a
segurança da aplicação financeira e sua proximidade com a própria
caderneta de poupança, não nos parece que a correção de seu saldo pela
TR represente qualquer tipo de ilegalidade/inconstitucionalidade”,
justificou o advogado tributarista.
Perdas
Pela legislação, o saldo do Fundo de Garantia é corrigido pela TR –
índice usado para atualizar o rendimento das poupanças – mais juros de
3% ao ano. No entanto, a TR, que foi criada em 1991 e é definida pelo
Banco Central, começou a ser reduzida paulatinamente e, desde julho de
1999, passou a ficar abaixo da inflação, encolhendo também a remuneração
do FGTS. Em 2013, por exemplo, a taxa acumulada foi de 0,19%, enquanto a
inflação do país, calculada pelo IPCA, fechou o ano em 5,91%.
Segundo o Instituto FGTS Fácil, organização não governamental que
auxilia e recebe reclamações de trabalhadores, o uso do atual indicador
resultou em perdas acumuladas de até 101,3% desde 1999, e R$ 201 bilhões
deixaram de ser depositados no período nas contas de cerca de 65
milhões de trabalhadores.
De acordo com cálculos do FGTS Fácil, o rendimento dos saldos no fundo
de garantia nos últimos 15 anos foi de 99,01%, ao passo que a inflação
medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), usado como
referência em questões trabalhistas pelo governo, acumulou variação de
157,12%.
Dentro dessa lógica, um trabalhador que tinha em junho de 1999 um saldo
de R$ 10 mil no FGTS, por exemplo, teria acumulado uma perda de mais de
R$ 20 mil.
Segundo a entidade, todo trabalhador admitido ou com saldo no FGTS a
partir de 10 de agosto de 1999, mesmo que já tenha sacado posteriormente
seu FGTS, teve perdas com os expurgos da TR.