Divulgação de cenas íntimas na internet é mais do que invasão de privacidade: é crime
Mais do que escancarar a realidade íntima de algumas garotas,
como nos recentes casos de imagens de pelo menos três jovens de Bento
Gonçalves que foram expostas na internet, a propagação de fotos de
conteúdo erótico em redes sociais e aplicativos de mensagens
instantâneas desperta outra abordagem comportamental nem sempre tão
discutida: a agilidade com que a mesma sociedade que incentiva e difunde
a sexualidade passa a condená-la de forma tão severa. É essa a
avaliação que a psicóloga e terapeuta sexual Jaqueline Barretti faz da
repercussão que as situações de desejada exposição na rede ganharam nas
últimas semanas.
Para a profissional, um dos aspectos mais importantes a serem
considerados é o tratamento diferenciado que é aplicado quando as
protagonistas dos fatos são do sexo feminino. “Nós sabemos que essa
descoberta da sexualidade, esses jogos sexuais, sempre existiram e
sempre existirão entre adolescentes. É uma maneira de experimentar o
prazer, mesmo sozinho, e que antes apenas era feita de outras formas. E
sabemos também que muitos meninos fazem esse tipo de fotos, mas nunca
são julgados da mesma forma que elas. A sociedade ainda é extremamente
perversa em casos assim, especialmente com a mulher”, analisa.
Quando os responsáveis por espalhar o material são, por exemplo,
ex-namorados ou amigos, o impacto tende a ser ainda maior. “É muito
pior, porque além de estar exposta, a pessoa ainda precisará conviver
com a decepção de ter confiado em alguém que traiu sua confiança. Quando
isso acontece em função do fim de um relacionamento, só reforça o
sentimento de posse e se transforma em uma vingança cruel”, destaca
Jaqueline.
O apoio da família é fundamental para superar o ocorrido e não
alimentar traumas que prejudiquem a vida daqui para frente. “Não adianta
fugir, ainda mais porque o mundo eletrônico não permite se esconder do
problema. Ele vai junto. E não há como esquecer, mas é preciso encontrar
a melhor forma de conviver com isso”, completa a psicóloga.
A chegada a um ponto extremo, como uma ocorrência em Veranópolis, em
2013, na qual uma jovem tirou a própria vida após ser vítima de situação
semelhante, é tratada pela especialista como exceção. “Normalmente, em
ocasiões assim, já há uma predisposição. Cabe justamente à família
acompanhar, monitorar e, se necessário, buscar ajuda profissional. Mas o
mais importante é ouvir, confiar e dar suporte”, explica.
Por fim, Jaqueline diz que é impossível esperar uma mudança
comportamental dos jovens e que o caminho não é exigir que eles passem a
reprimir seus sentimentos. “O que eles têm que aprender é encontrar uma
forma de se proteger dessas armadilhas. Infelizmente, para que a
maioria aprenda, alguns têm que pagar esse preço altíssimo. E é preciso
discutir cada vez mais esse assunto em casa e nas escolas. Não há outro
caminho, é preciso ser direto e objetivo com os adolescentes”, conclui a
terapeuta.
"É desumano", diz vítima
Um vídeo, extremamente íntimo, divulgado por um ex-namorado e
espalhado para milhares de pessoas, ainda marca a vida de uma empresária
de Bento Gonçalves, que prefere preservar sua identidade. O episódio,
que ocorreu quando ela tinha 16 anos de idade, deixou marcas que ela
jamais irá esquecer. Tudo começou quando um ex-namorado, inconformado
com o fim do relacionamento, mostrou o vídeo para colegas de trabalho.
Imediatamente, as imagens já estavam em diversas mãos. “Ele fez isso por
raiva e por maldade. Mas talvez nem ele tenha se dado conta do tamanho
da repercussão que iria ocasionar e como isso prejudicaria não só a
minha vida, mas também a dele”, conta, afirmando que depois do episódio
ele se mudou de Bento Gonçalves. “Não conseguia entender como a pessoa
teria coragem de fazer isso, afinal, estava me expondo e expondo a si
mesmo”. Confira trechos da entrevista.
SERRANOSSA – Como isso interferiu na sua vida?
Vítima – Seria muita hipocrisia dizer que esse fato não
interferiu na minha vida pessoal e profissional e nos meus
relacionamentos. Realmente interferiu, mas somente naquela época. Houve
momentos de indiferença. Os poucos amigos que se afastaram depois do
episódio hoje não fazem falta alguma e, inclusive, alguns buscaram uma
reaproximação. Por conta da divulgação do vídeo, fui demitida, mas a
empresa não imagina o quanto isso foi bom. Fez com que eu criasse
coragem para tantas outras coisas que eu já conquistei com meu trabalho:
apartamento pago, carro e faculdade, por exemplo. Depois disso, também
tive outros namorados e posso dizer que foram homens de verdade e que
nunca se importaram com isso. Emocionalmente, a mulher fica
desestruturada. Senti medo, pânico, raiva, ansiedade, nervosismo e
profunda tristeza. Quem julga, comenta, invade a intimidade de outra
pessoa causa outros danos a ela: morais, à saúde, à liberdade, às
escolhas.
SERRANOSSA – Como sua família reagiu?
Vítima – Eles procuravam não falar sobre este assunto e não
questionavam. Sabiam o que tinha acontecido, mas entenderam que fui
vítima de uma circunstância. E nunca me julgaram por conta do vazamento
na internet.
SERRANOSSA – Você processou essas pessoas que divulgaram e espalharam o vídeo?
Vítima – Naquela época não existiam leis específicas para
crimes eletrônicos, isso é bem recente. Absolutamente nada. Era tudo
muito vago. Entrei com um processo, mas as leis não colaboraram. Fui
ressarcida de outras formas. Se fosse hoje, certamente teria sido
diferente. Geralmente, a pena não condiz com a violência psicológica
causada.
SERRANOSSA – E hoje, como você vê essa situação?
Vítima – Hoje sou uma mulher madura, estabilizada, bem
relacionada, e não mais uma adolescente de 16 anos. Muitos, até hoje,
falam sobre a coragem que tive por ter enfrentado tudo isso sozinha, por
ter tapado os ouvidos para a ignorância alheia e tocado todos os sonhos
à frente. Confesso que por inúmeras vezes senti uma alegria imensa
quando me disseram: “tu não é nada daquilo que eu imaginava”.
SERRANOSSA – Hoje as imagens se espalham com muito mais rapidez, por causa de aplicativos nos celulares e redes sociais...
Vítima – Essa situação desumana vai contra as frases de
impacto que hoje são postadas nas redes sociais. O sujeito fala de
respeito, mas não assegura a privacidade de sua parceira; posta sobre
amizade, mas apunhala pelas costas a amiga; recita sobre educação e
debocha das fotos que viu. Essa situação me fez amadurecer mais depressa
e se tornou plausível analisar quem tem caráter. E a vida de uma pessoa
não pode ser rotulada somente por um vídeo ou uma foto. Já recebi fotos
e vídeos de inúmeras meninas, inclusive que conheço, e confesso não ter
visto nada diferente daquilo que todo mundo faz! Não repasso e não
tenho o mínimo de interesse em assistir. Outra coisa, a frase “é uma
guria de Bento” não cola mais. O sotaque é nordestino, mas dizem que a
guria é de Bento.
SERRANOSSA – O que você diria para quem está tendo imagens divulgadas?
Vítima – O vazamento de imagens na internet não é o que você
representa para si e para quem realmente merece a sua importância. É
ruim, constrangedor, difícil de digerir, mas passageiro. Porém requer
paciência. O segredo é ter coragem, assumir os erros, não ter vergonha
de ser o que é. Hoje é muito comum as meninas fazerem fotos eróticas e
salvar no celular. Simples, fácil e rápido: deletar sempre. Já os
sujeitos que repassam as imagens precisam se autoafirmar: querem mostrar
com quem estão se relacionando ou se relacionaram. Até não ser a vez da
própria mãe. É desumano, desrespeitoso, sem caráter. Acreditam que
ganharão “moral” perante os amigos. Querem farra, denegrir a mulher, ser
o centro das atenções no meio da turma. Quem repassa ensaia a
dissimulação. São imaturos e imensamente inseguros com a sua
sexualidade. Eles julgam a mulher, mas estão fazendo o quê? A mulher que
repassa este tipo de conteúdo também deve ficar atenta: a tecnologia
está aí, e ela pode ser a próxima.
Repassar imagens é delito
A delegada titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(Deam), Isabel Pires Trevisan, diz que o registro de ocorrências
envolvendo exposição íntima sempre aconteceu em Bento Gonçalves, mas tem
se popularizado em função das redes sociais. Segundo ela, o repasse de
imagens pornográficas sem autorização é crime. “É importante deixar
claro que todas as pessoas que repassam as imagens indevidas também
podem responder por crime contra a honra”, explica. Mesmo que não exista
uma lei específica para punir quem divulga imagens íntimas sem o
consentimento da pessoa, quem espalha esse tipo de conteúdo pode
responder pelos delitos de difamação e injúria, violência psicológica,
crime digital e pornografia infantil.
A delegada confirma que vários casos ainda estão em investigação.
“Nós temos diversas pessoas indiciadas por esse tipo de delito. Nesses
casos, o mais difícil é a identificação do autor. É importante que a
vítima consiga a maior quantidade de material possível para incluir no
inquérito”, conta. O primeiro passo para quem for vítima é procurar a
polícia.
Em Bento, os casos de crime contra a honra são investigados pela Deam
quando envolvem crianças ou adolescentes e pela Delegacia de Polícia de
Pronto Atendimento (DPPA) quando a vítima tiver mais de 18 anos. Isabel
alega que é difícil contabilizar o número total de ocorrências devido
às várias formas como elas podem estar catalogadas. “Esses crimes podem
ser registrados como difamação ou contra a honra, por exemplo, por isso é
difícil de dizer quantos registros recebemos em média. Existem outros
que não chegam a ser registrados”, explica.
A delegada pede mais cuidado na manipulação de imagens na internet.
“As pessoas devem se precaver nessa situação. Acreditamos que pessoas de
boa fé não devem repassar fotos ou vídeos, por isso concordamos que o
repasse também é crime. O que também temos recebido são montagens
fotográficas em que aparece somente o corpo e se manipula a imagem para
dar a entender que seja determinada pessoa. Isso também é crime”,
alerta. Em todos os casos, o procedimento da polícia é encaminhar os
dados para perícia. “Todo o material é encaminhado para perícia que
realiza uma investigação detalhada. Se preciso, os administradores das
páginas e redes sociais são contatados para que, caso necessário, seja
feita a quebra de sigilo”, diz a delegada.
Fique seguro!
Tome alguns cuidados com a manipulação de informações sigilosas na
internet. Sempre coloque uma senha em seu computador ou celular e evite
deixar imagens íntimas salvas – o furto de celular é comum. Fique atento
e não adicione pessoas que você não conhece. Suspeite de e-mails
desconhecidos.
O WhatsApp é um dos mais populares aplicativos no Brasil, mas vem
sendo utilizado para a prática de crimes eletrônicos, como o
compartilhamento de conteúdo ofensivo, ameaçador, difamatório e
envolvendo crimes de intolerância e pornografia infantil.
Como proceder se você foi vítima
O primeiro passo é procurar a Polícia Civil e registrar uma ocorrência com a maior quantidade de informações possível.
Converse com quem viu a imagem ou participa de grupos fechados e
verifique se há como descobrir os nomes dos participantes ou números
telefônicos dos responsáveis pelo conteúdo ofensivo.
Tenha em mente que o nome que aparece em um contato pode ser falso,
então, busque pelo número de telefone utilizado para repassar as
mensagens.
Se algum amigo recebeu o conteúdo, ele pode fazer um backup da conversa e enviar para um e-mail, que servirá como prova.
Após o registro da ocorrência, é possível abrir um processo para
requerer o extrato das comunicações feitas de um usuário WhatsApp para
outro. É um erro processar a operadora de telefonia ou provedor de
internet obrigando que sejam fornecidos dados de um usuário do WhatsApp,
já que cada um faz o cadastro independente no sistema.
Reportagem: Jonathan Zanotto, Jorge Bronzato Jr. e Raquel Konrad