sábado, 25 de janeiro de 2014

Um ano depois, odor e peregrinação alteram rotina de vizinhos da Kiss

Um pequeno trecho dos 2,7 km de extensão da Rua dos Andradas, em Santa Maria, foi o cenário da maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. Entre a Rua André Marques e a Avenida Rio Branco, o incêndio na boate Kiss causou, além de 242 mortes, debandada de moradores e estabelecimentos.
 

Pedestre passa por área isolada por cones em frente ao prédio onde funcionava a boate Kiss na Rua dos Andradas, em Santa Maria (Foto: Felipe Truda/G1) Entre os que ficaram, há quem ainda sinta em dias de chuva, um odor desagradável vindo do prédio onde funcionava a casa noturna. É um odor forte", conta a aposentada Nelsi Boessio Pigatto, de 68 anos, moradora do prédio à esquerda da antiga boate, no Centro da cidade. "Não vou te dizer que é de podridão, mas não é uma coisa normal. Caiu o fio da calçada, quando chove a água escoa toda por ali. (O cheiro) deve ser dali, deve estar contaminado", acrescenta.
 
Da esquina com a Rio Branco é possível ver os dois letreiros da Kiss na fachada, quase toda de madeira, à exceção de uma grande placa de metal lilás sobre a marquise da porta por onde centenas de jovens lutaram para fugir do fogo e da fumaça na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Após a tragédia, porta e as janelas que foram cobertas por tapumes de madeira foram ornamentados com cartazes, fotos e até peças de roupas que pertenciam a vítimas. Mesmo quase um ano depois do incêndio, flores e imagens religiosas ocupam parte do pequeno trecho descoberto da calçada, obrigando os pedestres circularem por um caminho improvisado por cones de sinalização.

A ordem de manter a construção intacta é da Justiça. Ainda neste ano serão realizadas a limpeza e a retirada dos escombros. Alguns materiais ainda serão recolhidos para perícia. O juiz que cuida do processo ainda pode pedir uma reconstituição no local. Mas a quantidade de materiais tóxicos ainda é um entrave. Uma das opções estudadas é a de usar um software para realizar uma reconstituição virtual.

Apesar de não haver muitos moradores por ser uma área mais comercial, o trecho da Andradas onde ficava a Kiss tem tráfego intenso de veículos nos horários de pico, por dar acesso à Rio Branco, uma das principais vias da cidade. Da janela de frente do prédio, a aposentada conta já ter visto colisões entre veículos porque os motoristas reduzem a velocidade para observar a fachada da casa noturna. "De vez em quando dá batida", diz.

Muitos jovens habitavam o prédio vizinho à boate, e na maioria dos casos moravam de aluguel. Grande parte deixou os apartamentos após a tragédia. "Os que moravam aqui se mudaram na outra semana. Saíram dois ou três, que moravam bem do meu lado, mais um casal e alguns estudantes", contou.

A Kiss ficava entre o prédio onde Nelsi mora e outra construção, que está abandonada. Do outro lado da rua, um supermercado cujo acesso se dá por outra rua e o estacionamento do local, onde corpos de vítimas foram perfilados na madrugada de 27 de janeiro, ocupam quase toda a extensão da quadra. Há ainda um estacionamento, um clube e algumas casas.

A tragédia marcou as vidas dos moradores. Poucos aceitam falar sobre o assunto. O designer gráfico Carlo Pozzbon de Moraes, de 26 anos, conta que trabalhava em casa durante a madrugada quando ouviu o tumulto frente à boate da boate por volta das 3h. Acordou o irmão, o publicitário Lucio Pozzobon de Moraes, de 22 anos, que dormia após chegar de uma festa, e os dois foram para a frente de casa auxiliar alguns sobreviventes. "No que descemos, veio um pessoal nos pedir água. Perguntamos o que houve e um rapaz explicou que acenderam o sinalizador ali dentro e pegou fogo e que muita gente não conseguia sair. Minha mãe sempre guarda garrafas de água para fazer gelo. Descemos com várias garrafas para dar ao pessoal", lembra.

Moradores e comerciantes da quadra evitam falar sobre a tragédia. Estabelecimentos deixaram o trecho da Rua dos Andradas em Santa Maria.

Pedestre passa por área isolada por cones em frente ao prédio onde funcionava a boate Kiss na Rua dos Andradas, em Santa Maria

Pedestre passa por área isolada por cones em frente ao prédio onde funcionava a boate Kiss na Rua dos Andradas, em Santa Maria 

Um pequeno trecho dos 2,7 km de extensão da Rua dos Andradas, em Santa Maria, foi o cenário da maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. Entre a Rua André Marques e a Avenida Rio Branco, o incêndio na boate Kiss causou, além de 242 mortes, debandada de moradores e estabelecimentos. Entre os que ficaram, há quem ainda sinta em dias de chuva, um odor desagradável vindo do prédio onde funcionava a casa noturna.

Desta segunda (20) até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio na Kiss.

A família continuou envolvida com a tragédia. Professora de língua portuguesa, a mãe de Lucio e Carlo, Marta Pozzobon de Moraes, perdeu ex-alunos. O pai, o engenheiro civil Glenio Braga de Moraes, contabiliza que entre as vítimas havia cerca de 20 conhecidos, entre elas dois familiares. "Ou eram ex-alunos de Marta, ex-colegas dos guris, ou conhecidos nossos. Da família, perdemos dois, o filho de um primo do pai de Marta e também o filho de uma prima por parte de minha mãe", diz Glenio.

Por pouco, não perderam um sobrinho que frequentava a casa noturna. “Se marcassem uma missa na Kiss ele iria. Mas ele havia ido a uma festa na noite anterior e bebeu demais, então a mãe não o deixou sair naquela noite", conta o engenheiro.

Desde então, a família relata que excursões de ônibus de outras cidades vêm a Santa Maria e visitam o prédio. Alguns pais ainda vão ao local. Glenio conta que todo o domingo um pai de uma vítima aparece em frente à construção, aparentemente embriagado, e grita pela morte do filho. "A mesma dor que eles sentiram, nós, como pais, e os guris, como amigos, também sentimos. É só se colocar no lugar dos outros. E acima de tudo temos de ter fé, não tem outra saída agora", lamenta Marta.

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