Um pequeno trecho dos 2,7 km de extensão da Rua dos Andradas, em
Santa Maria, foi o cenário da maior tragédia da história do Rio Grande
do Sul. Entre a Rua André Marques e a Avenida Rio Branco, o incêndio na
boate Kiss causou, além de 242 mortes, debandada de moradores e
estabelecimentos.

Entre os que ficaram, há quem ainda sinta em dias de chuva, um odor
desagradável vindo do prédio onde funcionava a casa noturna.
É
um odor forte", conta a aposentada Nelsi Boessio Pigatto, de 68 anos,
moradora do prédio à esquerda da antiga boate, no Centro da cidade. "Não
vou te dizer que é de podridão, mas não é uma coisa normal. Caiu o fio
da calçada, quando chove a água escoa toda por ali. (O cheiro) deve ser
dali, deve estar contaminado", acrescenta.
Da esquina com a Rio Branco é possível ver os dois letreiros da Kiss na
fachada, quase toda de madeira, à exceção de uma grande placa de metal
lilás sobre a marquise da porta por onde centenas de jovens lutaram para
fugir do fogo e da fumaça na madrugada de 27 de janeiro de 2013.
Após a tragédia, porta e as janelas que foram cobertas por tapumes de
madeira foram ornamentados com cartazes, fotos e até peças de roupas que
pertenciam a vítimas. Mesmo quase um ano depois do incêndio, flores e
imagens religiosas ocupam parte do pequeno trecho descoberto da calçada,
obrigando os pedestres circularem por um caminho improvisado por cones
de sinalização.
A ordem de manter a construção intacta é da Justiça. Ainda neste ano
serão realizadas a limpeza e a retirada dos escombros. Alguns materiais
ainda serão recolhidos para perícia. O juiz que cuida do processo ainda
pode pedir uma reconstituição no local. Mas a quantidade de materiais
tóxicos ainda é um entrave. Uma das opções estudadas é a de usar um
software para realizar uma reconstituição virtual.
Apesar de não haver muitos moradores por ser uma área mais comercial, o
trecho da Andradas onde ficava a Kiss tem tráfego intenso de veículos
nos horários de pico, por dar acesso à Rio Branco, uma das principais
vias da cidade. Da janela de frente do prédio, a aposentada conta já ter
visto colisões entre veículos porque os motoristas reduzem a velocidade
para observar a fachada da casa noturna. "De vez em quando dá batida",
diz.
Muitos jovens habitavam o prédio vizinho à boate, e na maioria dos
casos moravam de aluguel. Grande parte deixou os apartamentos após a
tragédia. "Os que moravam aqui se mudaram na outra semana. Saíram dois
ou três, que moravam bem do meu lado, mais um casal e alguns
estudantes", contou.
A Kiss ficava entre o prédio onde Nelsi mora e outra construção, que
está abandonada. Do outro lado da rua, um supermercado cujo acesso se dá
por outra rua e o estacionamento do local, onde corpos de vítimas foram
perfilados na madrugada de 27 de janeiro, ocupam quase toda a extensão
da quadra. Há ainda um estacionamento, um clube e algumas casas.
A tragédia marcou as vidas dos moradores. Poucos aceitam falar sobre o
assunto. O designer gráfico Carlo Pozzbon de Moraes, de 26 anos, conta
que trabalhava em casa durante a madrugada quando ouviu o tumulto frente
à boate da boate por volta das 3h. Acordou o irmão, o publicitário
Lucio Pozzobon de Moraes, de 22 anos, que dormia após chegar de uma
festa, e os dois foram para a frente de casa auxiliar alguns
sobreviventes. "No que descemos, veio um
pessoal nos pedir água. Perguntamos o que houve e um rapaz explicou que
acenderam o sinalizador ali dentro e pegou fogo e que muita gente não
conseguia sair. Minha mãe sempre guarda garrafas de água para fazer
gelo. Descemos com várias garrafas para dar ao pessoal", lembra.
Moradores e comerciantes da quadra evitam falar sobre a tragédia.
Estabelecimentos deixaram o trecho da Rua dos Andradas em Santa Maria.
Pedestre passa por área isolada por cones em frente ao prédio onde funcionava a boate Kiss na Rua dos Andradas, em Santa Maria
Pedestre passa por área isolada por cones em frente ao prédio onde funcionava a boate Kiss na Rua dos Andradas, em Santa Maria
Um pequeno trecho dos 2,7 km de extensão da Rua dos Andradas, em Santa
Maria, foi o cenário da maior tragédia da história do Rio Grande do Sul.
Entre a Rua André Marques e a Avenida Rio Branco, o incêndio na boate
Kiss causou, além de 242 mortes, debandada de moradores e
estabelecimentos. Entre os que ficaram, há quem ainda sinta em dias de
chuva, um odor desagradável vindo do prédio onde funcionava a casa
noturna.
Desta segunda (20) até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem
sobreviventes e familiares de vítimas e o que mudou na lei, nos hábitos e
na vida das pessoas um ano depois do incêndio na Kiss.
A família continuou envolvida com a tragédia. Professora de língua
portuguesa, a mãe de Lucio e Carlo, Marta Pozzobon de Moraes, perdeu
ex-alunos. O pai, o engenheiro civil Glenio Braga de Moraes, contabiliza
que entre as vítimas havia cerca de 20 conhecidos, entre elas dois
familiares. "Ou eram ex-alunos de Marta, ex-colegas dos guris, ou
conhecidos nossos. Da família, perdemos dois, o filho de um primo do pai
de Marta e também o filho de uma prima por parte de minha mãe", diz
Glenio.
Por pouco, não perderam um sobrinho que frequentava a casa noturna. “Se
marcassem uma missa na Kiss ele iria. Mas ele havia ido a uma festa na
noite anterior e bebeu demais, então a mãe não o deixou sair naquela
noite", conta o engenheiro.
Desde então, a família relata que excursões de ônibus de outras cidades
vêm a Santa Maria e visitam o prédio. Alguns pais ainda vão ao local.
Glenio conta que todo o domingo um pai de uma vítima aparece em frente à
construção, aparentemente embriagado, e grita pela morte do filho. "A
mesma dor que eles sentiram, nós, como pais, e os guris, como amigos,
também sentimos. É só se colocar no lugar dos outros. E acima de tudo
temos de ter fé, não tem outra saída agora", lamenta Marta.