A professora Nélia Mara defendeu, em fevereiro deste ano, sua tese de
doutorado, em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj). Com o título Você tem face?, o estudo pesquisou as experiências
infantis com as redes sociais online, tendo como plataformas de
investigação o Orkut e o Facebook.
“Em 2009, meus alunos de seis anos, na classe alfabetização,
perguntavam frequentemente se eu tinha Orkut e revelavam, com
frequência, novidades sobre seus perfis. Enquanto isso, o grupo de
pesquisa do qual faço parte desde 2005, Grupo de Pesquisa Infância e
Cultura Contemporânea, coordenado pela professora Rita Ribes, na UERJ,
voltava seu foco de estudos para a relação das crianças com as mídias
digitais, oportunizando a sistematização teórica e metodológica das
minhas questões nascidas na escola. Buscava entender porque as crianças
estavam no Orkut, como acessavam e o que gostavam de fazer nas redes
sociais online. Dois anos depois, as crianças migraram para o Facebook
e, em pouco tempo, muitas tinham suas primeiras experiências com as
redes sociais nele. Por isso, os dois sites foram as principais
plataformas de análise”, conta.
Segundo Nélia, o grande desafio foi conseguir construir uma metodologia
que não desprezasse a dimensão técnica do fenômeno que pretendia
estudar e que conseguisse captar, de alguma forma, a fugacidade das
relações online e, em última instância, a dinâmica da cultura
contemporânea. “Foi assim que nasceu uma pesquisa online, em que eu
conversei com crianças entre oito e onze anos através dos chats, além de
observar constantemente todas as atualizações nos perfis infantis”,
destaca.
Em entrevista à revistapontocom, Nélia conta detalhes do estudo e suas
principais conclusões sobre a relação das crianças com as redes sociais
online. “Desejo que a entrevista seja o começo de uma conversa com quem
se interesse pelo tema e que traduza também num convite para a leitura
da tese”, afirma.
Acompanhe a entrevista:
O que leva as crianças a participarem, cada vez mais, das redes sociais?
Nélia Mara – As redes sociais despontam na fase atual da cibercultura
como uma potência que inaugura novas experiências nas formas de se
relacionar, aprender, conviver, se expressar… Quando me interessei pelo
tema, busquei selecionar os sites que as crianças mais acessavam, como
forma de conhecer suas experiências e preferências na internet. Queria
ir onde elas estivessem. E apesar de, em 2009, época em que surgiram os
primeiros movimentos da pesquisa, eu ter conhecido alguns sites de rede
social voltados especialmente para crianças, estes não eram sequer
citados pelas crianças quando as indagava sobre o que faziam na
internet. Talvez esse seja um bom exemplo para pensar que as crianças
não vivem num mundo apartado dos adultos, mas estão inseridas na cultura
e dela participam ativamente. As crianças querem estar onde todos
estão.
Como podemos definir as crianças que participam das redes sociais?
N.M. – São crianças que inauguram experiências que situam a infância em
um lugar social inédito na cultura. A pesquisa me permite afirmar que a
presença e a participação das crianças nas redes sociais online
possibilitam que as vozes das crianças habitem o ciberespaço numa
relação de horizontalidade com as vozes dos adultos. Estão todos lá,
convivendo, interagindo, comunicando. Isto quer dizer que a
possibilidade de as crianças serem emissoras de conteúdo guarda uma
potência que liberta a infância dos estatutos modernos calcados na ideia
de menoridade e inferiorização em relação ao adulto. São crianças que
burlam os protocolos dos sites – que é bom lembrar, ostentam uma
proibição hipócrita, visto que atraem as crianças de forma velada –,
criam e se apropriam cada vez mais de novas linguagens, novas formas de
ser criança e de viver a infância. Para essas crianças, as redes sociais
representam hoje, sobretudo, novas formas de interação e
sociabilização. Elas jogam, brincam, conversam, assistem a vídeos,
produzem vídeos, se informam, aprendem coisas novas, consomem. No
entanto, é importante não perder de vista que a cibercultura, essa
cultura em rede que vivemos hoje, nos afeta não só materialmente, mas,
sobretudo, simbolicamente. Está em jogo a produção de novas linguagens,
subjetividades, de novas formas de aprender, de se relacionar, novas
relações com o tempo e com o espaço, o que é também vivido por quem não
tem, necessariamente, um perfil no Facebook.
São grandes as diferenças de formação, oportunidade, experiência e
conhecimento entre crianças que acessam e as que não acessam as redes?
N.M. – Pesquisas oficiais de cunho quantitativo sobre crianças e
internet, como as realizadas pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias
da Informação e da Comunicação (CETIC) em todo o território nacional,
têm demonstrado o quanto a condição socioeconômica é fator que determina
o acesso à internet, a frequência com que ocorre, bem como a posse de
aparatos técnicos. Renda familiar, classe social e região do país – dada
desigualdade no investimento das condições técnicas para a distribuição
da conexão, se compararmos os dados da região norte com a sudeste, por
exemplo – são elementos que interferem de maneira decisiva para a
participação das crianças nas redes sociais. No caso específico da
pesquisa que realizei, é importante dizer que não se adotou um recorte
de classe, pois se buscou, inicialmente, dialogar com crianças que já
possuíam perfis em sites de redes sociais e, num segundo momento,
crianças que fizessem parte da minha rede de contatos. Dito isto, a
pesquisa que realizei não se debruçou sobre um estudo comparativo entre
as crianças que têm acesso e as que não têm. No entanto, se aceitamos a
ideia de que a cibercultura nos afeta simbolicamente, a questão se
complexifica e exige aprofundamento. Mas é inegável que a oportunidade
de entrar em contato com o mundo através do seu próprio celular
posiciona a criança no mundo de maneira diferente daquela que, sequer,
tem o que comer. São, sem dúvida, experiências de infância distintas
qualitativamente. Penso que autonomia e criatividade estão no centro da
participação nas redes sociais online. Inclusive, as crianças precisam,
muitas vezes, criar datas de nascimento fictícias para terem acesso a
uma conta no site. Precisam criar um perfil com inúmeras informações
sobre si. O próprio ato de apenas “curtir”, no Facebook, alguma
postagem, já evidencia uma expressão. Solidariedade e ética são noções
por demais subjetivas para serem definidas aqui como algo propiciado
pelas redes sociais. As crianças que estão nas redes sociais estão em
diálogo com o mundo – elas têm acesso à informação, são encorajadas a se
mostrar, a emitir opiniões, a compartilhar o que gostam, a conversar.
Mas a formação se dá a todo momento: para a leitura, para a escrita,
para a relação com o outro, para a construção da própria identidade,
para a construção das noções de privacidade, formação para o consumo…
Por isso, ao mesmo tempo em que é indiscutível reconhecer a centralidade
que ocupam hoje as redes sociais na vida de muitas crianças, é
indispensável pensar em formas articuladas de oferecer uma mediação que
possam amplificar e qualificar todas estas fontes de in(formação).
Quando falamos de mediação pensamos no papel dos adultos. As crianças estão sozinhas na rede?
N.M. – Não, elas não estão sozinhas, ainda que acessem a internet sem
ninguém por perto fisicamente. Penso que o grande desafio, hoje, para
pais, professores e pesquisadores é pensar em novas formas de mediação
online. Dado o caráter diferenciado das tecnologias digitais, a mediação
não pode ser pensada sobre as mesmas bases, já consolidadas, das mídias
eletrônicas. A mobilidade, por exemplo, é uma realidade e uma tendência
também entre as crianças, já que a miniaturização dos aparelhos produz
também condições para um uso mais individualizado. Se, por um lado, a
impossibilidade de acompanhar fisicamente os acessos das crianças à rede
pode sugerir menos possibilidade de acompanhamento dos adultos ao que
as crianças acessam, há que se compreender que, online, as crianças
nunca estão sozinhas. Estar nas redes sociais pressupõe estar em diálogo
com alguém, seja um amigo, um familiar, um estranho ou mesmo uma
empresa. O “estar com” é a essência do “estar em rede”. Por isso, friso,
nosso papel enquanto adultos é buscar o diálogo com as crianças também
online, fazendo-se presente também nas redes sociais. Há responsáveis
que, sim, marcam sua presença de diferentes formas nos perfis de seus
filhos; outros não. Há uma diversidade nas formas como a permissão do
acesso às redes sociais acontece nas casas das crianças: há pais que
criam os perfis dos filhos, incentivando que coexistam em rede; também
há filhos que criam contas para seus pais, em busca de “atualizá-los”.
Há famílias, por exemplo, que impõem uma idade mínima para que a criança
conquiste o direito de estar numa rede social online, entendendo que é
preciso crescer para ganhar novas responsabilidades, mesmo que não seja
uma idade inferior à recomendada por sites como o Facebook ou o Orkut.
Há pais que usam seus perfis com os filhos, um uso compartilhado. Em
outros casos, e aqui já me posiciono como forma de dizer que penso ser a
postura mais interessante, cada indivíduo da família possui um perfil,
mas os pais e demais adultos interagem online com a criança
frequentemente, além de conversarem em casa sobre o assunto. É uma forma
de estar junto em rede, de acompanhar o que a criança faz, com quem
interage, o que comunica, mas permitindo que ela tenha seu espaço, que
ela construa seu perfil com suas características, preferências, fotos
que gosta, podendo expressar a singularidade da sua identidade na
internet.
E quanto à escola?
N.M. – A escola, de maneira geral, ainda não consegue ocupar o espaço
de quem pode e deve colocar esse assunto como questão curricular porque
ainda se baseia na lógica da vigilância, da proibição ou mesmo da
didatização das tecnologias sob um viés, algumas vezes, empobrecedor e
distante dos usos que as crianças fazem fora das salas de aula. Há
instituições que, inclusive, proíbem o uso de aparelhos em suas
dependências, parecendo fechar-se a uma realidade que está posta. Em
paralelo, crianças postam, em seus perfis, fotos na escola em tempo
real, o que denuncia que, a despeito de normas meramente burocráticas,
as crianças estão em rede, se conectam de seus dispositivos móveis e, na
maioria das vezes, a escola não se oferece para o diálogo.
E ao contrário do que se pensa, as crianças têm conhecimento dos perigos da internet, não é isso?
N.M. – As crianças demonstram ter muita informação sobre os perigos a
que, possivelmente, estamos todos expostos na internet e nas redes
sociais. Essas informações e ressalvas chegam de variadas fontes: a
família conversa e instrui, a televisão noticia casos variados sobre o
assunto e, mais timidamente, mas progressivamente, a escola também vai
se envolvendo neste debate, ainda que o uso desites de redes sociais
seja comumente proibido em seus espaços. As crianças mostraram que
elegem critérios para aceitar ou recusar pedidos de amizade e eu fui,
inclusive, recusada por muitas quando busquei realizar a pesquisa com
crianças indicadas por amigos, desconhecidas para mim. As recusas me
obrigaram a redesenhar os critérios de escolha dos interlocutores e
foram fundamentais no percurso da pesquisa. Ao longo do processo, também
me dei conta, em diálogo com outras pesquisas a que fui tendo acesso,
que as redes sociais são espaços de encontro entre pessoas que têm ou já
tiveram algum tipo de relação face a face. Assim, sob esta lógica, as
recomendações dos pais aos filhos sobre os perigos de dar atenção a
pessoas estranhas é incorporada também para a vida online. É possível
que esta constatação na minha tese, que nem sempre emerge em outros
estudos, tenha a ver com a abordagem teórico-metodológica que adotei na
pesquisa. A minha premissa foi de que as crianças estão de forma ativa e
autônoma nos sites de redes sociais e me interessou ver o que fazem,
como usam, por que usam e, em última instância, o que comunicam sobre
suas experiências quando estão em rede, enquanto sujeitos criativos e
produtores de cultura que são. Há outros estudos que, embora se detenham
em temática similar, se fundamentam em concepções de infância que
remetem aos pilares modernos de vulnerabilidade, inabilidade e
menoridade, já elencando como premissa que há perigos, há uma proibição
burocrática e, portanto, as crianças não deveriam estar lá. Penso que
falamos, portanto, de lugares distintos; logo, nos posicionamos de
formas diferentes em relação às crianças e às experiências de infância,
conduzindo as pesquisas por caminhos que, nem sempre, se encontram. É
preciso enfatizar aqui que reconhecer que as crianças entendem os
perigos a que estamos expostos na internet não representa ignorar a
importância do adulto no que diz respeito ao seu papel de proteção da
criança. Friso que é fundamental que o adulto assuma o seu lugar de quem
se oferece ao diálogo e aponta o caminho seguro. No entanto, me
preocupa observar como essa relação se traveste, muitas vezes, em
controle e vigilância por parte dos pais. Se é certo admitir que estamos
todos, adultos e crianças, aprendendo a viver em rede, também é preciso
compreender que a produção compartilhada de sentidos sobre o que nos
desafia é um processo que se dá em diálogo.
A participação de crianças e adultos no ambiente online vem estabelecendo um novo tipo de relacionamento?
N.M. – Essa pergunta conduz ao debate pertinente em torno da questão
geracional que marca os estudos sobre crianças e tecnologias digitais.
Quando nos espantamos com a intimidade dos bebês com um tablet nas mãos,
evidenciamos que a questão geracional está posta. Mas é importante não
perder de vista que a relação com as mídias sempre esteve atravessada
por essa tensão. O que parece complexificar a questão no contexto
cibercultura é que a velocidade das transformações e a obsolescência
como marca dessa era nos coloca, enquanto adultos, num lugar frágil de
quem também se vê inseguro e rendido pelas constantes novidades, tão bem
recebidas e incorporadas pelas crianças. Elas lidam com os aparatos de
forma lúdica, criativa e desbravadora, enquanto o adulto, com um olhar
mais cristalizado para a realidade, se relaciona de forma menos
espontânea. Mas, se as redes sociais podem ser concebidas como lugares
de encontro, podemos percebê-las na potência do encontro entre adultos e
crianças, e não como algo que produz algum tipo de impacto negativo, ou
que gera um abismo geracional.
Fonte - Observatório da Imprensa
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